segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Livro de Poemas, de Jorge Fernandes

Publicado em 1927, surpreendeu pela modernidade de sua proposta, pois sua literatura fez o contraponto com os versos parnasianos e neo-românticos dos poetas do Rio Grande do Norte.
Durante a década de 20, o autor rompeu com as formas antigas de poetar, iniciando o verso livre, sem rima, cantando as coisas mais prosaicas possíveis, o que causou escândalo na província conservadora. Não importava que os outros não quisessem ver. Ele via. Por isso, escreveu o Livro de Poemas.
Os quarenta textos que compõem a obra são considerados referências para o período e fizeram com que a obra tivesse repercussões fora da região Nordeste.Vejamos um dos poemas extraído desta obra:
MEU POEMA PARNASIANO Nº 1
Que linda manhã parnasiana...
Que vontade de escrever versos metrificados
Contadinhos nos dedos...
Chamar de reserva todas as rimas
Em - or - para rimar com amor...
Todas as rimas em - ade - pra rimar com saudade...
Todas as rimas em - uz - pra rimar com Jesus, cruz, luz...
Enfeitar de flores de afeto um soneto ajustadinho
Todo trancado na sua chave de ouro...
Remexo os velhos livros...
“Ah! que saudades eu tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida...”
Zim... (ligaram um dínamo de milhares de cavalos
E as polias giram e as máquinas abafam o último verso da quadrinha...)
E lá me vem à mente o ritmo dos teares...
As grandes rimas dos padrões...
Os fios se cruzam...
se unem pras grandes peças de linho...
- Óleos... fios... polcas... alavancas,
Apitos. Ponteadores.
Carrités.Zim traco! traco! traco! Malhos. Alicates. Ar comprimido.
Fuco! fuco! dos foles
Marcação de fardo pra exportação: marca M.B.C.
- Fortaleza - M.F.M. - Mossoró - setas e contra marca
-Trepidação de decoviles.
“Ah! que saudades eu tenho.”
E me abafa o segundo verso de Casemiro
Um caminhão cheio de soldados que segue para o interior
A caçar bandidos.
Que linda manhã parnasiana!
Vou recitar “A vingança da porta”.
Os lindos e sangrentos versos do meu passado:
- “Era um hábito antigo que ele tinha..
”Pregões de gazeteiros:
- Raide de San-Roman! Ribeiro de Barros
O grande momento da aviação mundial!
- Que poema forte o de San-Roman!
- Que poema batuta o de Ribeiro de Barros!
Todo misturado de nuvens, de óleo, gasolina,
De graxa, de gritos de bravos! de emoções!
Dem! dem! dem!: - o auto-socorro -
- Quem vem ali?
Um operário que quebrou uma perna de uma grande altura.
- Viva o grande operário!
- Viva o grande herói do dia!
- Vivôôôôô!...
Outro ponto importante é que nesta obra evidencia-se a invenção semântico/formal, o objeto (precário) como expressão meta-irônica, além da forma caligramática com que grafou o verso "Suspensa...", no poema REDE. Vejamos:
Embaladora do sono...
Balanço dos alpendres e dos ranchos...
Vai e vem nas modinhas langorosas...
Vai e vem de embalos e canções...
Professora de violões...
Tipóia dos amores nordestinos...
Grande... larga e forte... pra casais...
Berço de grande raça
Guardadora de sonhos...
Pra madorna ao meio-dia...
Grande... côncava...
Lá no fundo dorme um bichinho...
— ô...ô...ô...ôô...ôôôôôôôôô...
— Balança o punho da rede pro menino durmir...
Tomando a rede como símbolo de brasilidade, o poeta investiu no elemento regional armando-a nos “alpendres” e nos “ranchos” onde se vivem amores “nordestinos”. Tem-se, portanto, um quadro regional que não deixa de lembrar um clássico da brasilidade com raiz no romantismo: a imagem da rede como um “Vai e vem nas modinhas langorosas.../ Vai e vem de embalos e canções...” sugere o quadro romântico do poema “Adormecida”, de Castro Alves. Neste poema de Jorge Fernandes, superam-se os impasses românticos e ganha presença uma criança que é fruto de amores consumados na “Tipóia”, esta, como símbolo de valores ancestrais (indígenas) que se atualizam para a representação da “grande raça”.
Ao mesmo tempo, o poeta carrega tintas regionais para dar vida ao quadro representado quando, tornando visíveis as marcas da oralidade, conclui a cena com a espontaneidade da fala: a criança é “bichinho” que deve “durmir” embalado pela melodia do “ô...ô...ô...ôô... ôôôôôôôôô...”.
Seria este, pois, um poema que representaria o registro da brasilidade nordestina. Contudo, além de estabelecer tais relações, o poeta investe num experimentalismo formal praticamente inédito no Nordeste, naqueles anos, dando à imagem da rede um valor semântico que supera de muito a ousadia formal: “suspensa”, não é só a rede, é também a “grande raça” que “sonha”. Nesta ambigüidade, o valor porventura nostálgico que entrevê sobreposto à cena nordestina o quadro romântico da virgem adormecida, de Castro Alves, obnubila-se ante uma imagem que pode ser relacionada a outro valor, que chamamos de utópico: trata-se da representação de uma “raça” que, surrealisticamente, antecipa-se na sua posição “suspensa” à posição assumida por Macunaíma quando este se transforma na constelação da Ursa Maior. Mário de Andrade, diga-se de passagem, conheceu o poeta e o poema na sua passagem por Natal, naqueles anos modernistas, conforme se verifica nos relatos de O turista aprendiz (Mário de Andrade, 1983).
Obras da UFRN
Eles não usam black-tie - Gianfrancesco Guarnieri

Primeira peça de Gianfrancesco Guarnieri, Eles não usam black-tie, de 1958, foi encenada pela primeira vez quando o movimento Cinema Novo começava a surgir e a convocar a arte ao neo-realismo. No lugar de cenários pomposos e figurinos luxuosos, ficaram apenas os elementos de cena indispensáveis. Ao invés de personagens ricos e nobres, operários e moradores do morro tomaram o palco. Ali, em plenos anos 50, negros eram cidadãos comuns. Pela primeira vez, os conflitos da realidade brasileira ganhavam espaço na caixa cênica.
Eles não usam black-tie situa-se numa favela, nos anos 50, e tem como tema a greve, e ao lado da greve a peça tem como pano de fundo um debate sobre as grandes verdades eternas, reflexões universais sobre a frágil condição humana, sobre os homens e seus conflitos. É a história de um choque entre pai e filho com posições ideológicas e morais completamente opostas e divergentes, o que, por sinal, dá a tônica dramática ao texto.
O pai, Otávio, é operário de carreira, um sonhador, um idealista, leitor de autores socialistas e, ao mesmo tempo um revolucionário por convicção e consciente de suas lutas. Forte e corajoso entre os seus companheiros, experimentou várias lideranças, algumas prisões, com isso ganha destaque entre os seus transformando-se num dos cabeças do movimento grevista.
O filho, Tião, em razão das prisões do pai grevista, é criado praticamente, na cidade, longe do morro, com os padrinhos, sem conviver com esse mundo de luta e reivindicação da classe operária. Hoje adulto e morando no morro com os pais, vive um dos maiores conflitos de sua vida. Em primeiro lugar não quer aderir à greve, pois acha que essa é uma luta inglória, sem maiores resultados para a classe. Em segundo lugar pretende se casar com Maria, moça simples, porém determinada e leal ao seu povo, e está esperando um filho seu. Desta forma, Tião está mais preocupado com o seu futuro do que com a luta de seus companheiros, que sonham com melhores salários. Para Tião, greve é algo utópico. Ele não tem tempo para esperar, precisa resolver seus problemas de imediato, ou seja, se casar.
É preciso esclarecer que Tiäo, ao contrário de seu amigo Jesuíno, malandro, fraco e oportunista, é um jovem corajoso, mesmo porque fura a greve sem medo dos companheiros, achando que está agindo corretamente. Por essa atitude, acaba perdendo a amizade de todos de seu grupo, restando apenas um colega da fábrica e João, irmão de Maria, um homem ponderado e maduro capaz de compreender a situação conflitante vivida pelo amigo Tião e ainda apoiar sua irmã neste momento difícil.
Na realidade, Tião não tem medo do confronto com o inimigo. O seu medo é outro, é o grande medo de toda a sociedade, o medo de ser pobre, por isso quer subir na vida e deixar para trás a condição difícil e miserável do morro, que, por sinal, é desafiada cotidianamente pela coragem e bravura de Romana, sua mãe, mulher de pulso e determinação e responsável pelo equilíbrio da casa e da família.
Eles não usam black-tie é um texto político e social, sempre atual no qual Gianfracesco Guarnieri criou de um lado, personagens marcantes e populares como Terezinha, Chiquinho, Dalvinha e Jesuíno que nos revelam um mundo alegre, descontraído e aparentemente feliz. Já por outro lado a peça se apresenta forte e densa revelando de maneira real os conflitos que atormentam personagens como Otávio, Romana, Tião, Maria e Bráulio. São tais encontros e são esses momentos alegres e comoventes , que nos provocam o riso e a dor, alegria e tristeza. Assim, se por um lado mostra um olhar profundo dentro da sociedade brasileira, por outro esse olhar vem embalado por um valor poético materializado na visão romântica do mundo de seus personagens.
Embora, na convencional teoria de dramaturgia teatral não se enquadre essa abordagem, o drama social é de natureza épica e por isso mesmo uma contradição em si mesma. Aqui, novamente Guarnieri quebrou também outra regra essencial, presente nos manuais do "bom drama": ao invés de trazer personagens "superiores" como protagonistas, ele se utilizou de gente humilde, trabalhadores comuns, para conduzir sua história. Mesmo as mais simples metáforas, foram pinçadas nos mais básicos valores de nossa cultura popular, como por exemplo, na metáfora do amor, o feijão, prato massivo na América do Sul, teria um "coração de mãe".
A temática não é política, muito menos panfletária. O que discorre são relações de amor, solidariedade e esperança diante dos percalços de uma vida miserável. Assim, a peça alia temas como greve e vida operária com preocupações e reflexões universais do ser humano. Sob o olhar de Karl Marx, em um retrato iluminado por um feixe de luz na parede do cenário, o debate entre a coletividade e o individualismo, simultaneamente cru e sensível, vai crescendo.
Eles não usam black-tie é um marco do teatro de temática social.
Foi com a encenação de Eles não usam black-tie, que se iniciou uma produção sistemática e crítica de textos dispostos a representar as classes subalternas, com ênfase para a representação do proletariado. Nesse sentido, a peça de Guarnieri insere-se num quadro que se ampliou a partir da década de 1950, quando surgiu uma dramaturgia com preocupações ligadas à representação de uma camada específica da sociedade brasileira e, para além disso, em busca da construção de uma identidade nacional pautada em variedades culturais internas.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Livros do Vestibular da UFRN

Contos de Aprendiz (Carlos Drmond de Andrade)

Contos de aprendiz foi publicado em 1951. Foi a estréia de Carlos Drummond de Andrade como contista. Nessa época já havia publicado seus livros mais importantes - Alguma Poesia e Sentimento do Mundo - que o consagraram como um dos maiores poetas brasileiros.


A obra reúne 15 contos da maior ternura, incluindo aquele que é um exemplo do limite do real com o fantástico: "Flor, telefone, moça". Drummond conta as histórias que acontecem ou podem acontecer, na medida em que o acaso ou outro poder as torna possíveis, com o auxílio da imaginação alerta. Drummond gosta de relatar aquilo que parece o mínimo porém está cheio de significado na memória de cada um, como a surpresa e a decepção do primeiro sorvete, ou uma briga de irmãos que transforma a penitência infantil em pecado. Ou senão, a simples troca de palavras entre um homem e uma mulher, no coletivo, em que o olhar perturbado entra com sua carga de sensualidade. E ainda o devaneio da moça que prepara as figuras do presépio, na véspera de Natal, com o pensamento não no que fazia, mas no namorado. Drummond escreve uma prosa limpa, evidentemente com prazer - o prazer de contar sem intenção de brilhar.


O livro remexe em lembranças da infância do poeta, passando muitas vezes a falsa impressão de um livro de memórias. As histórias reunidas em Contos de aprendiz exercem uma relação franca como mundo, mexendo com os encantos da memória para desencantá-los e permitir que eles se mostrem como o que de fato são: mitos.A poesia de Drummond é algo que extrapola o gênero poético, podendo se revelar em qualquer parte, mesmo em contos delicados e de aparência despretensiosa, mas fortes, como os de Contos de aprendiz.


A trama dos contos oscila entre a descoberta da cidade interiorana, seus códigos de comportamento, angústias e alegrias, e momentos inusitados na vida atropelada da então capital do país. A metrópole enlaça e abraça os seus habitantes, para mais pungente tornar a solidão humana. Sobressai-se nestes contos a presença de uma voz amiga. Como diz o próprio contista, "é doce ouvir amigos, ainda quando não falam, porque amigo tem o dom de se fazer compreender até sem sinais. Até sem olhos".


Em Contos de aprendiz, ao lado da contida, mas intensa expressão de afeto e rejeição ao absurdo do mundo, perspassa um humor irônico em relação à diferença entre o que os homens mostram ou parecem ser e o que são, uma das tônicas da visão deste poeta que se definiu como "um gauche na vida". Livro que insere o misticismo e o mito da poesia, mas que remete para uma trama sempre curta, onde poucos personagens acabam, num tempo curto, chegando ao fim de suas problemáticas ou deixando-as à média rés, como, aliás, acontece freqüentemente.


No cronista, o espírito ávido de denúncias se ocupa sempre do povo e de seus problemas, dando ao leitor de hoje uma visão sincrônica de tudo quanto ele, na pele de seus concidadãos, vivenciou e sofreu. A obra drummondiana se mantém atualizada em nossos dias; dela se depreende a visão crítica de um mundo cujas conseqüências repercutem ainda em nossas existências.


Como já vimos, muitos dos contos se realizam sobre as recordações dos tempos infantis, estando assim impregnados de suave ondulação emocional, colocando o leitor tão próximo de outra realidade, que ele fica pensando que, se houve por ali algum cronista, ele acabou sufocado pelo peso da narrativa ou, como quer o poeta, “pelo mau cheiro da memória”. Há também contos de maior fôlego, como o já citado “Flor, telefone, moça” e “O gerente”, que participam de um superior tratamento da matéria ficcional. Neles estamos diante de exemplos de perfeição no gênero. Drummond conseguiu imprimir sobre estruturas tradicionais a graça, a diafaneidade, a poesia e o mistério dos contos modernos, criando uma atmosfera de penumbra em que a linguagem mais sugere que descreve, e em que o leitor se vê obrigado a participar da obra para tentar descobrir as suas mais íntimas intenções.

Quanto à sua concepção de conto, ela aparece quase sempre indiretamente: tem de ser depreendida e compreendida pelo leitor. Em Contos de aprendiz há uma pequena nota (que não aparece na sexta edição da Aguilar) em que se diz que a coisa que mais o fascinava (Drummond) nas histórias ouvidas quando criança, não era o enredo, o desfecho, a moralidade; e sim um aspecto particular da narrativa, a resposta de um personagem, o mistério de um incidente, a cor de um chapéu...


Contos escolhidos:


1. PRESÉPIO


Dasdores (assim se chamavam as moças daquele tempo) sentia-se dividida entre a Missa do Galo e o presépio. Se fosse à igreja, o presépio não ficaria armado antes de meia-noite e, se se dedicasse ao segundo, não veria o namorado.


É difícil ver namorado na rua, pois moça não deve sair de casa, salvo para rezar ou visitar parentes. Festas são raras. O cinema ainda não foi inventado, ou, se o foi, não chegou a esta nossa cidade, que é antes uma fazenda crescida. Cabras passeiam nas ruas, um cincerro tilinta: é a tropa. E viúvas espiam de janelas, que se diriam jaulas.


Dasdores e suas numerosas obrigações: cuidar dos irmãos, velar pelos doces de calda, pelas conservas, manejar agulha e bilro, escrever as cartas de todos. Os pais exigem-lhe o máximo, não porque a casa seja pobre, mas porque o primeiro mandamento da educação feminina é: trabalharás dia e noite. Se não trabalhar sempre, se não ocupar todos os minutos, quem sabe de que será capaz a mulher? Quem pode vigiar sonhos de moça? Eles são confusos e perigosos. Portanto, é impedir que se formem. A total ocupação varre o espírito. Dasdores nunca tem tempo para nada. Seu nome, alegre à força de repetido, ressoa pela casa toda. "Dasdores, as dálias já foram regadas hoje?" "Você viu, Dasdores, quem deixou o diabo desse gato furtar a carne?" "Ah, Dasdores, meu bem, prega esse botão para sua mãezinha”. Dasdores multiplica-se, corre, delibera e providencia mil coisas. Mas é um engano supor que se deixou aprisionar por obrigações enfadonhas. Em seu coração ela voa para o sobrado da outra rua, em que, fumando ou alisando o cabelo com brilhantina, está Abelardo.


Das mil maneiras de amar, ó pais, a secreta é a mais ardilosa, e eis a que ocorre na espécie. Dasdores sente-se livre em meio às tarefas, e até mesmo extrai delas algum prazer. (Dir-se-ia que as mulheres foram feitas para o trabalho... Alguma coisa mais do que resignação sustenta as donas-de-casa.) Dasdores sabe combinar o movimento dos braços com a atividade interior — é uma conspiradora — e sempre acha folga para pensar em Abelardo. Esta véspera de Natal, porém, veio encontrá-la completamente desprevenida. O presépio está por armar, a noite caminha, lenta como costuma fazê-lo no interior, mas Dasdores é íntima do relógio grande da sala de jantar, que não perdoa, e mesmo no mais calmo povoado o tempo dá um salto repentino, desafia o incauto: "Agarra-me!" Sucede que ninguém mais, salvo esta moça, pode dispor o presépio, arte comunicada por uma tia já morta. E só Dasdores conhece o lugar de cada peça, determinado há quase dois mil anos, porque cada bicho, cada musgo tem seu papel no nascimento do Menino, e ai do presépio que cede a novidades.


As caixas estão depositadas no chão ou sobre a mesa, e desembrulhá-las é a primeira satisfação entre as que estão infusas na prática ritual da armação do presépio. Todos os irmãos querem colaborar, mas antes atrapalham, e Dasdores prefere ver-se morta a ceder-lhes a responsabilidade plena da direção. Jamais lhes será dado tocar, por exemplo, no Menino Jesus, na Virgem e em São José. Nos pastores, sim, e nas grutas subsidiárias. O melhor seria que não amolassem, e Dasdores passaria o dia inteiro compondo sozinha a paisagem de água e pedras, relva, cães e pinheiros, que há de circundar a manjedoura. Nem todos os animais estão perfeitos; este carneirinho tem uma perna quebrada, que se poderia consertar, mas parece a Dasdores que, assim mutilado e dolorido, o Menino deve querer-lhe mais. Os camelos, bastante miúdos, não guardam proporção com os cameleiros que os tangem; mas são presente da tia morta, e participam da natureza dos animais domésticos, a qual por sua vez participa obscuramente da natureza da família. Através de um sentimento nebuloso, afigura-se-lhe que tudo é uma coisa só, e não há limites para o humano. Dasdores passa os dedos, com ternura, pelos camelinhos; sente neles a macieza da mão de Abelardo.


Alguém bate palmas na escada; ô de casa! amigas que vêm combinar a hora de ir para a igreja. Entram e acham o presépio desarranjado, na sala em desordem. Esta visita come mais tempo, matéria preciosa ("Agarra-me! Agarra-me!"). Quando alguém dispõe apenas de uns poucos minutos para fazer algo de muito importante e que exige não somente largo espaço de tempo mas também uma calma dominadora — algo de muito importante e que não pode absolutamente ser adiado - se esse alguém é nervoso, sua vontade se concentra, numa excitação aguda, e o trabalho começa a surgir, perfeito, de circunstâncias adversas. Dasdores não pertence a essa raça torturada e criadora; figura no ramo também delicado, mas impotente, dos fantasistas. Vão-se as amigas, para voltar duas horas depois, e Dasdores, interrogando o relógio, nele vê apenas o rosto de Abelardo, como também percebe esse rosto de bigode, e a cabeleira lustrosa, e os olhos acesos, dissimulados nas ramagens do papel da parede, e um pouco por toda parte.


A mão continua tocando maquinalmente nas figuras do presépio dispondo-as onde convém. Nada fará com que erre; do passado a tia repete sua lição profunda. Entretanto, o prazer de distribuir as figuras, de fixar a estrela, de espalhar no lago de vidro os patinhos de celulóide, está alterado, ou subtraí-se. Dasdores não o saboreia por inteiro. Ou nele se insinuou o prazer da missa? Ou o medo de que o primeiro, prolongando-se, viesse a impedir o segundo? Ou um sentimento de culpa, ao misturar o sagrado ao profano, dando, talvez, preferência a este último, pois no fundo da caminha de palha suas mãos acariciavam o Menino, mas o que a pele queria sentir sentia, Deus me perdoe — era um calor humano, já sabeis de quem.


Aqui desejaria, porque o mundo é cruel e as histórias também costumam sê-lo, acelerar o ritmo da narrativa, prover Dasdores com os muitos braços de que ela carece para cumprir com sua obrigação, vestir-se violentamente, sair com as amigas — depressa, depressa, ir correndo ladeira acima, encontrar a igreja vazia, o adro já quase deserto, e nenhum Abelardo. Mas seria preciso atribuir-lhe, não braços e pernas suplementares, e sim outra natureza, diferente da que lhe coube, e é pura placidez. Correi, sôfregos, correi ladeira acima, e chegai sempre ou muito tarde ou muito cedo, mas continuai a correr, a matar-vos, sem perspectiva de paz ou conciliação. Não assim os serenos, aqueles que, mesmo sensuais, se policiam. O dono desta noite, depois do Menino, é o relógio, e este vai mastigando seus minutos, seus cinco minutos, seus quinze minutos. Se nos esquecermos dele, talvez pule meia hora, como um prestidigitador furta um ovo, mas, se nos pusermos a contemplá-lo, os números gelam, o ponteiro imobiliza-se, a vida parou rigorosamente. Saber que a vida parou seria reconfortante para Dasdores, que assim lograria folga para localizar condignamente os três reis na estrada, levantar os muros de Belém. Começa a fazê-lo, e o tempo dispara de novo. "Agarra-me! Agarra-me!" Nas cabeças que espiam pela porta entreaberta, no estouvamento dos irmãos, que querem se debruçar sobre o caminho de areia antes que essa esteja espalhada, na muda interrogação da mãe, no sentimento de que a vida é variada demais para caber em instantes tão curtos, no calor que começa a fazer apesar das janelas escancaradas — há uma previsão de malogro iminente. Pronto, este ano não haverá Natal. Nem namorado. E a noite se fundirá num largo pranto sobre o travesseiro.


Mas Dasdores continua, calma e preocupada, cismarenta e repartida, juntando na imaginação os dois deuses, colocando os pastores na posição devida e peculiar à adoração, decifrando os olhos de Abelardo, as mãos de Abelardo, o mistério prestigioso do ser de Abelardo, a auréola que os caminhantes descobriram em torno dos cabelos macios de Abelardo, a pele morena de Jesus, e aquele cigarro — quem botou! — ardendo na areia do presépio, e que Abelardo fumava na outra rua.


quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Tipos de Argumentação
1. Argumento de Autoridade: a conclusão se sustenta pela citação de uma fonte confiável, que pode ser um especialista no assunto ou dados de instituição de pesquisa, uma frase dita por alguém, líder ou político, algum artista famoso ou algum pensador, enfim, uma autoridade no assunto abordado. A citação pode auxiliar e deixar consistente a tese.

Não se esqueça de que a frase citada deve vir entre aspas.
Veja:
O cinema nacional conquistou nos últimos anos qualidade e faturamento nunca vistos antes. “Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça” - a famosa frase-conceito do diretor Gláuber Rocha – virou uma fórmula eficiente para explicar os R$ 130 milhões que o cinema brasileiro faturou no ano passado. (Adaptado de Época, 14/04/2004)

2. Argumento por Causa e Conseqüência: para comprovar uma tese, você pode buscar as relações de causa (os motivos, os porquês) e de conseqüência (os efeitos).
Observe:
Ao se desesperar num questionamento em São Paulo, daqueles em que o automóvel não se move nem quando o sinal está verde, o indivíduo deve saber que, por trás de sua irritação crônica e cotidiana, está uma monumental ignorância histórica.São Paulo só chegou a esse caos porque um seleto grupo de dirigentes decidiu, no início do século, que não deveríamos ter metrô. Como cresce dia a dia o número de veículos, a tendência é piorar ainda mais o congestionamento – o que leva técnicos a preverem como inevitável a implantação de perigos. (Adaptado de Folha de S. Paulo. 01/10/2000)

3. Argumento de Exemplificação ou Ilustração: a exemplificação consiste no relato de um pequeno fato (real ou fictício). Esse recurso argumentativo é amplamente usado quando a tese defendida é muito teórica e carece de esclarecimentos com mais dados concretos. Veja o texto abaixo:

A condescendência com que os brasileiros têm convivido com a corrupção não é propriamente algo que fale bem de nosso caráter. Conviver e condescender com a corrupção não é, contudo, praticá-la, como queria um líder empresarial que assegurava sermos todos corruptos.
Somos mesmo?
Um rápido olhar sobre nossas práticas cotidianas registra a amplitude e a profundidade da corrupção, em várias intensidades.
Há a pequena corrupção, cotidiana e muito difundida. É, por exemplo, a da secretária da repartição pública que engorda seu salário datilografando trabalhos “para fora”, utilizando máquina, papel e tempo que deveriam servir à instituição. Os chefes justificam esses pequenos desvios com a alegação de que os salários públicos são baixos. Assim, estabelece-se um pacto: o chefe não luta por melhores salários de seus funcionários, enquanto estes, por sua vez, não “funcionam”. O outro exemplo é o do policial que entra na padaria do bairro em que faz ronda e toma de graça um café com coxinha. Em troca, garante proteção extra ao estabelecimento comercial, o que inclui, eventualmente, a liquidação física de algum ladrão pé-de-chinelo. (Jaime Pinksky/Luzia Nagib Eluf.. Brasileiro(a) é Assim Mesmo, Ed.Contexto)

4. Argumento de Provas Concretas ou Princípio: ao empregarmos os argumentos baseados em provas concretas, buscamos evidenciar nossa tese por meio de informações concretas, extraídas da realidade. Podem ser usados dados estatísticos ou falsos ou fatos notórios (de domínio público).

São expedientes bem eficientes, pois, diante de fatos, não há o que questionar...No caso do Brasil, homicídios estão assumindo uma dimensão terrivelmente grave. De acordo com os mais recentes dados divulgados pelo IBGE, sua taxa mais que dobrou ao longo dos últimos 20 anos, tendo chegado à absurda cifra anual de 27 por mil habitantes. Entre homens jovens (de 15 a 24 anos), o índice sobe a incríveis 95,6 por mil habitantes. (Folha de S. Paulo. 14/04/2004)
Conheça os 10 mandamentos do Vestibulando
Não existe uma fórmula mágica para garantir o sucesso no vestibular. Tampouco normas e imposições costumam surtir efeito prático nas jovens cabeças envolvidas com as provas. Mas, de acordo com professores e psicólogos, alguns procedimentos podem auxiliar os vestibulandos a obter bons resultados nos exames que os aguardam.

Os 10 Mandamentos do Vestibulando resumem algumas dessas dicas. Assim como na Bíblia Moisés recebeu dos céus as leis divinas para orientar os homens, a proposta é apontar formas de tornar o desafio do vestibular menos pesado.

Para o psicólogo Jones Antônio dos Santos, do Multi Serviços em Psicologia (Musp), um item fundamental para os vestibulandos é a consciência de seu próprio papel no processo de entrada da universidade, desde a escolha da profissão até a maneira de se preparar para os testes.

O professor Alecsandre Pires, da organização não-governamental Junta de Coordenação e Assistência ao Aluno, recomenda o máximo de atenção possível às explicações em aula e considera os ambientes tranqüilos e silenciosos como os mais adequados para o estudo. O professor Milton Simões, do curso pré-vestibular Mauá, sugere que os estudantes comecem as provas pelas questões mais fáceis, enfrentando as mais difíceis no final.

A psicóloga Suzymara Trintinaglia alerta que o vestibulando tem de respeitar seu próprio ritmo de estudo, sem forçar-se a estudar mais horas do que o adequado, e ressalta a necessidade de diálogo entre estudantes e familiares no momento da escolha profissional.

OS DEZ MANDAMENTOS
I - Não escolherás uma profissão pensando apenas no mercado de trabalho e no retorno financeiro. O candidato tem de buscar sempre saber o porquê de estar realizando o vestibular e, também, o motivo de estar escolhendo uma determinada carreira. O autoconhecimento é condição fundamental para uma decisão adequada. É preciso escolher algo de que se vá gostar.

II - Honrarás teus pais sendo feliz com tua escolha profissional. O vestibulando deve dialogar com os pais para que eles compreendam e respeitem suas decisões. Uma recomendação é que não haja promessas de ambos os lados (por exemplo, o compromisso de ganhar um carro com a aprovação no concurso é um fator de ansiedade).

III - Amarás o próximo como a ti mesmo mas, no dia do vestibular, competirás com ele. Ninguém precisa rejeitar os amigos nem adotar um comportamento agressivo, mas é necessário ser competitivo no momento da prova para buscar o melhor desempenho possível.
IV - Respeitarás teus hábitos de alimentação, sono, diversão e descanso. A disciplina de estudos é importante, mas deve haver espaço para o lazer. O tempo de sono, por exemplo, deve ser preservado. O lazer diminui a possibilidade do estresse. Na alimentação, frutas, líquidos e alimentos leves são recomendados. Remédios contra a ansiedade e estimulantes não devem ser tomados por conta própria.

V - Buscarás o apoio incondicional dos teus familiares. Um ambiente tranqüilo é o mais recomendável para o estudo. Todo o grupo familiar deve colaborar com o vestibulando, mas sem cobrar dele o tempo de estudo, por exemplo, para não aumentar a ansiedade.

VI - Não estudarás toda a matéria nos últimos dias antes da prova. O conhecimento exigido no vestibular é construído ao longo do Ensino Médio. O melhor momento para aprender é a explicação em aula, para a qual o aluno deve prestar o máximo de atenção. A prova do vestibular é o término de um processo.

VII - Vestibular é vida. Vida não é vestibular. Respeitarás teu ritmo de estudo e teus limites. A idéia é descobrir o tempo ideal de estudo, em lugar de estudar horas a fio ou sacrificar o sono sem conseguir se concentrar. Uma sugestão é revisar a matéria fazendo resumos dos conteúdos e resolvendo provas de vestibulares passados. É importante também contextualizar as informações de cada matéria, procurando correspondência com as outras disciplinas.

VIII - Conhecerás antecipadamente o local da prova e não esquecerás os documentos no dia. É importante visitar o local de prova para saber como é o trajeto e para conhecer os horários dos meios de transporte disponíveis (ônibus, lotação, táxi, etc). No dia da prova, evite correrias deslocando-se com antecedência para a prova.

IX - Não farás das provas teste de rapidez e ocuparás todo o tempo disponível. O recomendável é ler atentamente os enunciados das questões, para interpretá-las corretamente. Outra dica é garantir o máximo de acertos com as questões consideradas mais fáceis, enfrentando depois as mais complicadas.

X - Nunca desistirás da tua identidade profissional. Persistirás na busca da faculdade que desejas, mesmo se fores reprovado. Se a convicção pela a escolha profissional é firmada no autoconhecimento, o vestibulando deve perseguir sempre seu objetivo, sem esmorecer com eventuais reprovações.

Fonte: Zaz - Vestibular Luís Bissigo/ Zero Hora